domingo, 30 de setembro de 2012

CRÔNICA: AQUELE OLHAR - ALEXANDER DE SOUZA (BRASIL)






Foto: Iguaba, por Vanda Lúcia da Costa Salles






  AQUELE OLHAR


                            ALEXANDER DE SOUZA (BRASIL)*




      Engraçado como a vida faz nossos valores se distorcerem. Num momento acreditamos em algumas coisas que ela mesma ensinou. No outro, tudo vira de cabeça para baixo e a gente se pega questionando tudo; a conduta de pessoas, a nossa, a própria vida e até mesmo Deus.
     Eu sei que é clichê, mas nunca estamos satisfeitos com nada até a vida nos colocar à prova e é aí que uma parte de nós, absconsa e real, como um bebê esperando para vir ao mundo, se revela. Quem tem o mínimo de coerência, nessas horas, percebe que na maior parte da existência reclama por razões mesquinhas ou por não ter o quê dizer.
     Em algum lugar da minha memória, um fato que tive o desprazer de presenciar exemplifica bem o que eu quero dizer. Foi no início da tarde de um sábado. Eu ia para o trabalho muito P da vida. Calor pra cacete. Minha escala estava errada e o meu chefe não estava nem aí pra isso. Que inveja do pessoal fora do ônibus!  Sentados num bar, tomando cerveja e batendo papo enquanto o otário aqui, pagava seus pecados numa condução lotada e pra jogar logo a pá de cal, no meio de um engarrafamento que faria às provações de Jó parecerem histórias pra boi dormir.
     Fazer o quê, né? Fui resmungando o tempo todo durante um trecho que, hoje penso, não cobria o espaço de meio quilômetro. Mas que se dane!  Naquele momento eu só pensava em reclamar e sentir inveja daquele povo lá fora, porque eu estava dentro de um veículo que parecia me levar direto para o inferno.
     Estranho. Até hoje não sei como os meus reflexos afastaram o pragmatismo mesquinho em meus pensamentos e fixaram minha visão no corpo de um homem jogado ao chão, bem ali, na calçada.
     - Ele caiu! - gritou alguém.
     - Foi atropelado! - responde outra pessoa
     - Ele tá é bêbado. - gritou, em deboche, um grupo de adolescentes no fundo do ônibus.
     Os comentários ao meu redor me deixavam atordoado e o impulso foi o de me levantar, porém eu permaneci observando. Queria ver o rosto do sujeito, que permanecia virado para baixo.
     Quando ele conseguiu virar-se afinal, o que eu vi, ficou gravado em minha mente. O que vi foi ódio. Eu vi impotência. Sua respiração era profunda e retinha em si, toda a vergonha do mundo mesclada à uma frustração que o meu choque não entendera o motivo, até então.
     Nesse momento surgiu diante do infeliz outro homem com duas muletas nas mãos, jogou em cima do sujeito, gritando coisas do tipo: " Vai aprender a andar antes de encher o saco dos outros eu cachaceiro sem pernas".
    Eu vi o homem recolher suas muletas com dificuldade, se levantar. O dono do bar, rindo às suas costas, continuava:
    - Além de perneta e cachaceiro você fede que nem porco!  Vê se aprende a tomar banho, seu otário!"
    O homem desapareceu no meio do povo, mas a cena ficou ali. O calor desaparecera. O engarrafamento não tinha mais importância. Muito menos o emprego. Aquela deformação da vida fez o mundo tomar outra forma.
    Ao meu redor os comentários continuaram durante algum tempo, alguns indignados, outros a favor do dono do bar, porém durante a viagem, cada passageiro voltou ao egoísmo de suas vidas, inclusive eu, que parei de reclamar.Todavia um pensamento, no mínimo sombrio, me envergonha até hoje e eu não consegui evitar: " Ainda bem que eu tenho pernas para ir pro trabalho."


  ( In. CENTELHA MÁGICA )



* ALEXANDER DE SOUZA: poeta, cronista, e como ele mesmo diz, um aprendiz da diferença. É funcionário do Ciep Brizolão 121-Joadélio Codeço, no Marambaia, em São Gonçalo-RJ, Brasil.
     



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