segunda-feira, 25 de abril de 2011

CONTO: A MULHER QUE DESCOSTUROU O CONGRESSO NACIONAL - VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES (BRASIL)



Foto: O Chamado das Musas- óleo/acrílico s/tela, Vanda Lúcia da Costa Salles




A MULHER QUE DESCOSTUROU O CONGRESSO NACIONAL


VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES (BRASIL)





A forma do bordado tecia....
Caminhava ao longo da praia e focava o infinito, na vertical.
A profunda ressaca parecia insurgir-se contra tudo e todos em seu caminho devorador para depois arrebentar-se toda de gosto nas encostas dos enormes paredões, na orla das pedras das tartarugas e transformar-se em branquíssimas espumas que se infiltravam na areia banhando as desovas ou entre as algas dos rochedos impenetráveis.
Ousada, a mulher única, teimava em escrever e ler, ali, destemida no traço.
O caxarelo e sua amada cria vinham mansamente aprender com ela a ouvir e ver estrelas aquietadas por entre os corais emocionados.
Os de bicudos chapéus diziam que essa mulher lia para os peixes, porque uma ternura imensa acompanhava-a no dia e na flexibilidade do instante, quando – entre o breve e o infinito -, ela havia devorado o congresso nacional. Descosturando toda a sensatez do politicamente correto.
Primeiro, desfiou a urdidura. Depois, uma por uma, a trama. Destecendo a linha, fio por fio. Remodelou-o. Como boa tecelã, colocou em alto relevo o patrimônio histórico ambiental e enfatizou a cultura. Do folclórico, um brilho a mais. A língua brilhante em sua forma, e em sua mais variada literatura, infinitamente lusófona.
Redesenhou o conjunto de rios, a magnífica vegetação em todos os seus matizes de verde calculados cuidadosamente, um a um, nas diferentes panelas de seu ateliê.
Bordou no sisal com angico, urucum e o açoita-cavalo, todas as cores necessárias para acentuar os minérios, as montanhas, as praias, os animais existentes e imagináveis. Um boitatá surgiu descomunal, com toda a sua força, paciência e profundidade das fiadas dum azul-escuro, entremeado de roxo e branco zinco. Desse branco, tão neutro, mas desejando harmonia em seu fulgor, entremeou-se um amarelo em todos os seus matizes. Um sol brotou, acima. Dois batuíras, alguns socós, belas piaçocas, vários irerês, surucuás-de-barriga-amarela e uns tantos martim-pescador sob um céu indescritível.
Riscado no vermelho das linhas e dos traçados amarelecidos de um devaneio lilás brotado num cipó-de-ouro, em maracujás-da-praia, uma família de tiziu estabelecia em uníssono o canto geral. Um João-de-barro a porta da casa descobria da argila seca. Bicando em revoadas o barro. Liberto de seus medos trabalhava
firme e feliz.
A vitória-régia estampava-se imperiosa. No fundo das águas profundas, um jovem pescador brincava com Kisimbi e seus cântaros, formadores das águas doces das cachoeiras e dos rios, do mundo. Perfumada, a flor de maracujá exalava-se dando nua. O cheiro insurgia-se no ar, os poros da pele latejavam-se em desejos
lasos.
Um pouco mais acima, Agorréia – a serpente sagrada-, com toda a sua divina graça e seu colorido real, seduzia Angarô, o pai arco-íris. Virado estava em seus
devaneios.


( In. Universo Secreto ( Entre o Abismo e a Montanha), Vanda Lúcia da Costa Salles)