Foto: Iguaba, por Vanda Lúcia da Costa Salles
AQUELE OLHAR
ALEXANDER DE SOUZA (BRASIL)*
Engraçado como a vida faz nossos valores se
distorcerem. Num momento acreditamos em algumas coisas que ela mesma ensinou.
No outro, tudo vira de cabeça para baixo e a gente se pega questionando tudo; a
conduta de pessoas, a nossa, a própria vida e até mesmo Deus.
Eu sei que é clichê, mas nunca estamos
satisfeitos com nada até a vida nos colocar à prova e é aí que uma parte de
nós, absconsa e real, como um bebê esperando para vir ao mundo, se revela. Quem
tem o mínimo de coerência, nessas horas, percebe que na maior parte da
existência reclama por razões mesquinhas ou por não ter o quê dizer.
Em algum lugar da minha memória, um fato que
tive o desprazer de presenciar exemplifica bem o que eu quero dizer. Foi no
início da tarde de um sábado. Eu ia para o trabalho muito P da vida. Calor pra
cacete. Minha escala estava errada e o meu chefe não estava nem aí pra isso.
Que inveja do pessoal fora do ônibus! Sentados num bar, tomando cerveja e
batendo papo enquanto o otário aqui, pagava seus pecados numa condução lotada e
pra jogar logo a pá de cal, no meio de um engarrafamento que faria às provações
de Jó parecerem histórias pra boi dormir.
Fazer o quê, né? Fui resmungando o tempo todo
durante um trecho que, hoje penso, não cobria o espaço de meio quilômetro. Mas
que se dane! Naquele momento eu só pensava em reclamar e sentir inveja
daquele povo lá fora, porque eu estava dentro de um veículo que parecia me
levar direto para o inferno.
Estranho. Até hoje não sei como os meus
reflexos afastaram o pragmatismo mesquinho em meus pensamentos e fixaram minha
visão no corpo de um homem jogado ao chão, bem ali, na calçada.
- Ele caiu! - gritou alguém.
- Foi atropelado! - responde outra pessoa
- Ele tá é bêbado. - gritou, em deboche, um
grupo de adolescentes no fundo do ônibus.
Os comentários ao meu redor me deixavam
atordoado e o impulso foi o de me levantar, porém eu permaneci observando.
Queria ver o rosto do sujeito, que permanecia virado para baixo.
Quando ele conseguiu virar-se afinal, o que eu
vi, ficou gravado em minha mente. O que vi foi ódio. Eu vi impotência. Sua
respiração era profunda e retinha em si, toda a vergonha do mundo mesclada à
uma frustração que o meu choque não entendera o motivo, até então.
Nesse momento surgiu diante do infeliz outro
homem com duas muletas nas mãos, jogou em cima do sujeito, gritando coisas do
tipo: " Vai aprender a andar antes de encher o saco dos outros eu
cachaceiro sem pernas".
Eu vi o homem recolher suas muletas com dificuldade,
se levantar. O dono do bar, rindo às suas costas, continuava:
- Além de perneta e cachaceiro você fede que nem
porco! Vê se aprende a tomar banho, seu otário!"
O homem desapareceu no meio do povo, mas a cena
ficou ali. O calor desaparecera. O engarrafamento não tinha mais importância.
Muito menos o emprego. Aquela deformação da vida fez o mundo tomar outra forma.
Ao meu redor os comentários continuaram durante
algum tempo, alguns indignados, outros a favor do dono do bar, porém durante a
viagem, cada passageiro voltou ao egoísmo de suas vidas, inclusive eu, que
parei de reclamar.Todavia um pensamento, no mínimo sombrio, me envergonha até
hoje e eu não consegui evitar: " Ainda bem que eu tenho pernas para ir pro
trabalho."
( In. CENTELHA MÁGICA )
* ALEXANDER DE SOUZA: poeta, cronista, e como ele mesmo diz, um aprendiz da diferença. É funcionário do Ciep Brizolão 121-Joadélio Codeço, no Marambaia, em São Gonçalo-RJ, Brasil.