quarta-feira, 31 de agosto de 2011

HOMENAGEM: NEM NAVIO - JORGE BARBOSA- CABO VERDE


NEM NAVIO


JORGE BARBOSA (CABO VERDE)


Nem navio nem sombra de nuvem no mar
para um adeus da largada...


Esta saudade infinita
é uma ilusão que se disfarça


grita
que a dor passa!


- Saudade é voz ancorada...



VOCÊ: BRASIL



Eu gosto de você, Brasil,

porque você é parecido com a minha terra.

Eu bem sei que você é um mundão

e que a minha terra são

dez ilhas perdidas no Atlântico,

sem nenhuma importância no mapa.

Eu já ouvi falar de suas cidades:

A maravilha do Rio de Janeiro,

São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos.

Ao passo que as daqui

Não passam de três pequenas cidades.

Eu sei tudo isso perfeitamente bem,

mas Você é parecido com a minha terra.



E o seu povo que se parece com o meu,

que todos eles vieram de escravos

com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.

E o seu falar português que se parece com o nosso falar,

ambos cheiros de um sotaque vagaroso,

de sílabas pisadas na ponta da língua,

de alongamentos timbrados nos lábios

e de expressões terníssimas e desconcertantes.

É a alma da nossa gente humilde que reflete

A alma das sua gente simples,



Ambas cristãs e supersticiosas,

sortindo ainda saudades antigas

dos sertões africanos,

compreendendo uma poesia natural,

que ninguém lhes disse,

e sabendo uma filosofia sem erudição,

que ninguém lhes ensinou.



E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.

dos seus cateretês, das suas todas de negros,

caiu também no gosto da gente de cá,

que os canta dança e sente,

com o mesmo entusiasmo

e com o mesmo desalinho também...

As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,

fazem lembrar as suas músicas,

com igual simplicidade e igual emoção.



Você, Brasil, é parecido com a minha terra,

as secas do Ceará são as nossas estiagens,

com a mesma intensidade de dramas e renúncias.

Mas há no entanto uma diferença:

é que os seus retirantes

têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,

ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem

porque seria para se afogarem no mar...



Nós também temos a nossa cachaça,

O grog de cana que é bebida rija.

Temos também os nossos tocadores de violão

E sem eles não havia bailes de jeito.

Conhecem na perfeição todos os tons

e causam sucesso nas serenatas,

feitas de propósito para despertar as moças

que ficam na cama a dormir nas noites de lua cheia.

Temos também o nosso café da ilha do Fogo

que é pena ser pouco,

mas — você não fica zangado —

é melhor do que o seu.



Eu gosto, de Você, Brasil.

Você é parecido com a minha terra.

O que é é tudo e à grande

E tudo aqui é em ponto mais pequeno...

Eu desejava ir-lhe fazer uma visita

mas isso é coisa impossível.

Eu gostava de ver de perto as coisas

espantosas que todos me contam

de Você,

de assistir aos sambas nos morros,

de esta cidadezinha do interior

que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita ternura,

de me deixar arrastar na Praça Onze

na terça-feira de Carnaval.

Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,

d de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —

e rolar com ela um maxixe requebrado.

Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto

e você veria como é que eu sou bom camarada.



Havia então de botar uma fala

ao poeta Manuel Bandeira

de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima

para ver como é que a poesia receitava

este meu fígado tropical bastante cansado.

Havia de falar como Você

Com um i no si

— “si faz favor —

de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos

— “mi dá um cigarro!”.



Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?

Impossíveis”.



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JORGE BARBOSA: Jorge Vera Cruz Barbosa nasceu na ilha de Santiago de Cabo Verde em 22 de Maio de 1902. Fez os seus estudos primários na cidade da Praia e veio depois para Lisboa, onde estudou até ao 3° ano. Regressa em seguida para Cabo Verde, continuando os seus estudos até ao 5° ano.

Aos dezoito anos começa a trabalhar na Alfândega de São Vicente. Percorre quase todas as ilhas em serviço, para onde é transferido por várias vezes. Aposentou-se na ilha do Sal, em 1967, com sessenta e cinco anos, com a categoria de director de alfândega.

Em Setembro de 1970, já bastante adoentado do coração, vem para Portugal tratar-se, falecendo três meses depois, em Janeiro de 1971.

Vida sem grandes sobressaltos e limitada à fronteira marítima que inspirou tantos dos seus poemas. No entanto, profunda e imensa em sonhos e em viagens imaginadas que jamais realizou.

Jorge Barbosa publicou em vida três livros: Arquipélago (1ª edição em Dezembro de 1935, sob a égide da Editorial Claridade), Ambiente (1ª edição em 1941, Praia, Minerva de Cabo Verde) e Caderno de um Ilhéu (1ª edição em 1956, Lisboa, Agência Geral do Ultramar). Postumamente, em 2002, a sua Obra Poética foi reunida pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde se acrescentou três livros inéditos, ordenados pelo poeta: I – Expectativa; II – Romanceiro dos Pescadores; III – Outros Poemas. Nestes três livros encontram-se alguns poemas que foram apresentados na Poesia Inédita e Dispersa de Jorge Barbosa, publicada, em 1993, pelas Edições ALAC. Os que restam e que ficaram de fora dos três livros inéditos foram incluídos igualmente numa parte IV com o título Poemas dispersos. Incluem-se ainda, na parte V, cinco poemas em crioulo.

Deu a sua colaboração literária a revistas e jornais da época, como Presença, Claridade (quer nos três primeiros números, quer nos seis restantes da 2ª fase), Cadernos de Poesia, Diabo, Atlântico, Mundo Português, Aventura, Movimento, Mensagem (CEI), Notícias de Cabo Verde. Mais regularmente, a sua colaboração foi para o Boletim de Cabo Verde, durante vários anos, não só com poemas, como também com as crónicas de São Vicente e artigos vários.




http://lusofonia.com.sapo.pt/jorge_barbosa.htm

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/cabo_verde/jorge_barbosa.html

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

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Foto: IRP.GROUP




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sábado, 13 de agosto de 2011

domingo, 7 de agosto de 2011

HOMENAGEM: UMA CRÔNICA DE NATAL- RAYMUNDO NETTO (BRASIL)*



Foto: Bandeira do Brasil



Foto; Raymundo Netto (Brasil)





UMA CRÔNICA DE NATAL



RAYMUNDO NETTO (BRASIL)


Não sei vocês, mas eu nunca gostei do Natal. Acho uma data muito triste, deprimente, talvez por isso, um dia, decidi que só me casaria se fosse num Natal. Assim o fiz!
Nunca escondi de ninguém esse meu desânimo natalino, a vontade de fugir de festinhas de confraternização, amigos secretos, jingle bells e coisas assim. Penso que, justamente por isso, é que me acontecem coisas como a que revelarei agora para vocês.
Uma tia, semana passada, trouxe a minha casa, emprestado, um relógio de parede — com gabinete de carvalho escurecido, pêndulo dourado e umas raladurazinhas no mostrador de algarismos romanos — que pertenceu a meus avós. Desde menino era louco por aquele relógio... Pois bem, na madrugadinha, acordei com o seu sonoro gemer de horas. Na casa pequena o som reverberava. Como parecesse não parar nunca, pensei: "Será que travou?"
Ao chegar ao corredor, o susto: uma figura esfumaçada, de olheiras sulcadas e cavanhaque revoltoso, saía da portinhola de vidro do relógio e argentava, num clarão, a sala:
— Ebenezer! Ebenezer! — berrava em tom gutural.
— Ebenezer? Está falando comigo?
— Sim, seu tolo insensível! Não lembra mais de mim? Marley, Boz Marley!
— Não, seo Boz, pode voltar para o seu relógio... Ligação errada!
Ele não me dava ouvidos, ou não os tinha, e continuava como numa cantiga de grilo:
— Ebenezer, eu sou o espírito do Natal e o levarei para conhecer o Natal do passado, do presente e do futuro. Você precisa se arrepender já, enquanto ainda há tempo, senão...
Arrependimento? Nem precisava, coleciono tantos, tantos... Mas ele não me ouvia. Enlaçou meu pescoço com as pesadas correntes que arrastava e, como por encanto, tudo em minha sala pôs-se a desaparecer: o sofá velho (este, eu nem liguei), a tevê, a cadeira de balanço e até a empoeirada árvore de natal onde, desde o ano passado, o pisca-pisca deixara de funcionar. Tudo desapareceu dando lugar a calçadas, prédios e um renque de postes: estávamos na rua!
O Natal do passado
Reconheci o Palacete de Carvalho Mota, antigo prédio da Inspetoria das Secas: era a rua General Sampaio, centro da cidade.
Percebi que, na esquina, um pequeno terreno amurado atraía várias crianças. "O que está acontecendo ali?", perguntei ao Boz. "Você quer saber? Vamos lá, então." —, arrastou-me.
Dali de cima, podíamos ver um senhor moreno — Antônio de Paula Barros, disse-me o Boz — suando às bicas por detrás de uma lapinha. Na verdade, era uma espécie de cidade em miniatura, toda mecanizada, onde se via um trem com rostinhos de passageiros que saiam e se escondiam rapidamente, automóveis, lavadeiras, soldados marchando, a procissão, operários numa fábrica, serenatistas ao pé de um sobrado, um cata-vento rangedor, o engenho, o carrossel e sinos de igreja a badalar numa ilusão diorâmica sustentada a fios movidos por um velho motor, enquanto um gramofone, roucamente, tocava uma antiga melodia natalina.
Dois cisnes cruzavam o espelho margeado pela areia dando a impressão de uma lagoa. Próxima, e no centro da pequena cidade feita de papelão e latas amassadas, a manjedoura do menino Jesus era alteada por uma estrela de papel. As crianças, e mesmo os curiosos pais, riam admirados até quando acontecia algum "acidente" e o pobre Barros tinha que desmanchar aquilo tudo, puxando fios, ajeitando os bonequinhos, desentalando o trem descarrilado. "Que coisa linda"..., pensava, quando senti puxar-me o pescoço: "É hora de irmos adiante, Ebenezer!"
O Natal no presente
Num piscar de olhos, saímos do centro e fomos parar num Shopping Center, o "não-lugar" de todas as cidades do mundo. O espírito não parecia tão severo quanto antes. Sentou-se embaixo de uma fonte e observava as pessoas comprando, comprando, comprando. Num canto, o trono de um Papai Noel triste — "não estaria ganhando pouco demais?" — a bater no piso com o coturno cadencioso. As pessoas entravam e saiam das lojas num corre-corre danado, indiferentes à torre de concreto que crescia, ali ao lado, por sobre um tapete de mangue. Elas conferiam listas, endividavam-se, discutiam, falavam que tinham de ir para a festa de Fulano, tinham que comprar o presente para Ciclano e tinham mais outras tantas coisas para fazer, mas, o que queriam mesmo, era largar tudo isso e assistir ao show da dupla chorosa que iria tocar no reveillon naquele hotel de luxo... "Mas com quem iriam deixar as crianças? Ah, elas atrapalhavam!"
— Já vi o bastante, e você? — sentenciava o espírito.
— Eu não sei, para mim parece tudo tão normal. Quer dar uma passadinha na praça da alimentação, não, espírito? — nem me respondeu!

O Natal no Futuro
Estávamos na praça do Ferreira, foi o que o Boz me disse, eu não a reconheci. Aliás, nem tinha mais esse nome. No meio dela, ao invés da Coluna da Hora, um imenso Jesus de fibra todo iluminado, braços abertos e olhos de martírio, girava enquanto abria a bocarra para receber as moedas que as pessoas lhe lançavam. O mais impressionante era que aquelas pessoas não tinham face, acredita? Verdade... Não tinham olhos, narizes ou bocas, e, às costas, via-se uma pronunciada chave de corda que as impulsionava, maquinalmente, a seguir em frente com suas roupas, sapatos, bolsas e cabelos iguais. A diversidade tinha ido para o espaço, assim como as árvores, os rios, lagoas, pássaros e os animais. O céu embaçava visto através de uma redoma de vidro; o piso e grama emborrachados, os jardins de plástico e alumínio. Família? Ninguém sabia o que era isso. Filhos, só de incubadeiras! Não sabiam pensar, repetiam apenas. Moravam sozinhos em lofts. Nem sei se esse povo todo estava ali ou eram apenas imagens holográficas:
— Consumismo demais, desperdício demais! Só ganância, egoísmo, vaidade, violência, exploração e muita mentira! Então, Ebenezer, você está convencido de que precisa mudar?
— Sim, espírito... Tenho que mudar e voltar a ser o Raymundo Netto novamente. Eu não sou esse tal Ebenezer, criatura! Vossa fantasmagoria se enganou feio. Quero mais ver nada, não!
— Sério? Não é o Ebenezer Scrooge? — olhou para um pedaço de papel — Homessa, não é a primeira vez, em minha divisão, que digitam o CEP errado. Secretárias! Mil perdões, foi mal!
Dizendo isso agitou os braços e, de repente, eu estava novamente em minha casa.
De volta...
No silêncio da sala, o sol já despontava. Iria deitar-me, quando olhei para a árvore de natal apagada. Lembrei: basta apenas uma das lâmpadas do pisca-pisca queimar para que todas as outras percam a sua função. Assim como as pessoas... Devagar, troquei a pequena lâmpada, e, toda ela voltou a brilhar! Sentei para admirar a dança das coloridas piscantes que tocavam uma musiquinha parecida com a da lapinha do velho Paula Barros. Pareciam me dizer: nós não estamos sozinhos e temos que comemorar todos os nossos dias. Feliz Natal, amigos e ledores!



Obs.: Texto baseado em Um Conto de Natal de Charles "Boz" Dickens (1812-1870)



*RAYMUNDO NETTO :Escritor, designer, quadrinhista e produtor cultural. Autor do romance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada" (IMPRECE), ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da SECULT/CE (2005), e dos infanto-juvenis "A Bola da Vez" (2008) e "A Casa de Todos e de Ninguém" (2009), ambos pelas Edições Demócrito Rocha. É cronista convidado do Caderno Vida e Arte do jornal O POVO há três anos. Atualmente, é coordenador editorial da SECULT/CE.


( Texto originalmente publicado no jornal O Povo/ www.opovo.com.br)